06 dezembro 2009

Testemunho: do ensino ao call-centre; de Portugal para Inglaterra

Pois bem, comigo não foi diferente. Como tantos outros não pude deixar de lutar contra uma vida que insiste em contrariar todas as nossas expectativas, todos os nossos sonhos e anseios, mesmo se os mesmos se resumem a algo tão simples como uma casa à qual podemos chamar nossa, um emprego e algum dinheiro no bolso para gerir com saber e querer.

Também eu sou professor, de ciências, e quando conto a quem comigo trabalha existirem por terras de Portugal dezenas de milhar de professores no desemprego, ninguém me acredita. Não quero com isto dizer ser a Inglaterra uma qualquer terra prometida, porque não só não o é como, caso esta aposta não resulte, tenho toda a certeza de amanhã ser mais um dia onde duas pernas e dois braços persistirão em animar o meu corpo e esta vontade. Importante é acreditar.

Também eu vivi o desemprego e ainda hoje carrego comigo esse sentimento de culpa de quem acha ser nossa a responsabilidade de um dia encarar tal situação. Mas não é, a culpa não é nossa, e num repente somos mais um desses casos que dão razão à psicologia. Porque crescemos condicionados à função de produzir.

Estive um ano sem ser colocado e cedo percebi não haver lugar para mim no universo tão pequeno que é Portugal, um País de cunhas, cunhados e conhecidos onde não se valoriza o mérito pessoal e onde a oportunidade é para quem já a tem, e não para quem a queria. Mas emigrar foi sempre a última opção. Não há alegria em deixar para trás toda uma família e os amigos que se criaram durante uma vida. E por tal, e tentando fugir ao óbvio, decidi enveredar por outro curso e outra área: a área da enfermagem. Afinal, ainda vivemos num país onde a opinião geral é de que "o importante é ter saúdinha". E conquanto haja saudinha para tratar, esperava eu, como enfermeiro, não ter de emigrar. O resultado prático foi ter de desistir do curso ao fim de dois anos e meio, porque a exigência do mesmo reprova por um ano quem chumba a uma só disciplina de estágio, e a vida não nos dá espaço para andar por aqui a perder anos de vida, não quando já me crescem os cabelos brancos, e não numa sociedade ansiosa por drenar a juventude que nos vive nos braços.

Desisti de enfermagem numa sexta-feira e comecei a preparar a partida no sábado, uma partida que levaria ainda um ano e meio a concretizar. Na quarta-feira seguinte estava a trabalhar no buraco dos licenciados e dos desgraçados: um call-centre da TV Cabo. A experiência sui generis de se ser insultado ao telefone oito horas por dia só não deitou por terra toda a pouca auto-estima que ainda me sobrava porque pelo meio fiz a viagem tão prometida à minha namorada (fomos à Suécia) e nunca, mas mesmo nunca, deixei de procurar um emprego.

Graças à internet (na Internet we trust) coleccionei listas formidáveis de contactos electrónicos de escolas públicas, escolas particulares, centros de formação, jornais e revistas, estágios profissionalizantes e estágios não remunerados, até finalmente, oito meses volvidos num rolo de carne em sangue, poder saltar de um buraco na direcção de outro: os centros de estudo. Se por um lado fugi ao insulto, por outro a exploração mercantil a que somos sujeitos é, em definitivo, um insulto em si. Mesmo tendo em conta o facto de ter feito algum dinheiro e agora, olhando para Portugal, saber haver professores a receber cento e cinquenta euros a troco de meio horário de trabalho (o qual é, por norma, pago a quadriplicar).

Como não podia deixar de ser, continuei à procura de emprego. Pelo caminho soube haver por terras de Inglaterra uma grande falta de professores de ciências. Meu dito, meus amigos, meu feito. Estabeleci os contactos e tratei das qualificações.

Estávamos no início de 2007, mês de Janeiro, e ao fim da terceira semana de Fevereiro já tinha o especial certificado na caixa do correio. Estava tudo preparado para partir para Inglaterra! No entanto, faltava o mais difícil: partir. Essa fase, que foi a última, ainda me levou sete meses, só tendo aqui chegado corria o ano no mês de Setembro.

Para trás deixei toda as lágrimas em pequenos saquinhos debaixo das asas do avião, e comigo trouxe a certeza cega de nunca mais voltar a um país que, lentamente, nos atira para longe de todos a quantos queremos. Porque não há alternativas. Ou isso, ou o a resignação de uma vida parva e pequena, mesquinha, onde "o que importa é que haja saúdinha...", dia após dia, até nada mais haver senão uma mão de terra onde o licenciado acaba por se conhecer a plantar uma batata e uma couvinha porque a auto-subsistência é o futuro cada vez mais presente. Ao fim de três semanas estava a trabalhar, e hoje estou numa escola de ensino especial em West Ham, Londres, onde me pagam e onde recebo, onde trabalho e onde aprendo.

Pago as minhas contas e não sou mais um filho de Portugal à procura de contrariar esse epíteto de "geração rasca", mesmo sendo eu, à data, um dos melhores alunos da escola. Não, isso não conta. O que conta é a batalha geracional, e essa também não escolhe prisioneiros.

Os filhos de Abril são mais que mil e gritam ao cair.

Daqui por uma semana estarei a viver com a minha namorada por terras de Londres, à procura de cumprir a promessa de não mais nos separarmos. O que acontecer daqui em diante é a vida, a mesma que nos é negada porque vedada, em terras de Portugal.

As saudades são muitas, mas nada há que me espere no regresso a casa senão um princípio de fome. Poucos amigos ainda fiz e a maior parte do meu tempo tem sido dedicada ao trabalho, mas aos poucos, creio, uma vida hei-de construir e o futuro está ali à porta, à espera do meu consentir, para que eu o deixe entrar dentro da sala-de-aula, de mala às costas em direcção à carteira da frente, onde se senta e onde abre o livro para mais um dia de aulas.

5 comentários:

Daniela disse...

Desejo-lhe muita sorte, tudo o que diz é verdade. Realmente aqui dá-se muito valor à "saúdinha" e por isso é que as farmácias e os hospitais estão sempre cheios...mas a Enfermagem com o passar do tempo virou também uma ilusão neste país...tenho duas amigas enfermeiras que estão a trabalhar na Irlanda...dizem k n voltam para Portugal nem por nada! Ganham la tanto dinheiro k uma delas em pouco tempo comprou um carro e passa a vida a viajar, para países quentes claro pk o clima na Irlanda é péssimo. Vêm cá a Portugal muitas vezes, através da Ryan Air as viagens são baratissimas, ainda mais para quem está a ganhar muito dinheiro! Somos mesmo um país de terceiro mundo ainda, de onde as pessoas vão partindo em busca de melhor...felicidades!

Sofia disse...

Gostei de ler. Nao sou licenciada mas passei 3 anos no call center da Vodafone e um dia decidi que ja chegava e tambem me mudei para Londres.

Anónimo disse...

É um de muitos: licenciei-me há poucos anos e metade dos meus colegas de formatura vive noutros países. Uns arrenpenderam-se e regressaram, a maioria ficou, três constituiram lá família...

Anónimo disse...

Desejo te muita sorte...eu estou na mesma situacao que tu estavas, tambem sou licenciada sai agora de um callcenter porque me fartei de tantos insultos e enviei dezenas de curriculos, encontrei qq coisa, nao sei como vai ser...comeco amanha...!!! Mas concordo ctg, em Portugal so consegues e ficar desmotivado, aqui so com factor C e que consegues um emprego, acredita q nao acredito no desenvolvimento deste pais...
Felicidades e muito boa sorte!!!

Paulo disse...

é isso mesmo, Portugal sempre foi um país de cunhas, compadrios e nunca se deu mérito a quem merece.