23 outubro 2011

Bem-vindos ao país dos trabalhadores pobres

Portugal tem 2,5 milhões de trabalhadores que ganham entre 700 e 800 euros. As medidas de austeridade vão transformá-los em novos pobres

O Portugal pós-Orçamento de Estado para 2012 vai ver reforçada uma das suas singularidades no espaço europeu: os trabalhadores pobres. Descontam, entram e saem do trabalho todos os dias a horas certas e até têm contratos sem termo, mas não ganham o suficiente para cobrir as despesas básicas.

Apesar disso, e porque têm rendimentos mensais superiores aos 434 euros per capita que o Instituto Nacional de Estatística (INE) considera para efeitos de demarcação da linha de pobreza, não são elegíveis em termos de prestações sociais.

Em 2009, os chamados working poor perfaziam 12% dos 1,8 milhões de portugueses em risco de pobreza. A estatística é do INE e é a mais recente disponível. Em 2010, ninguém sabe quantos eram. Quantos serão em 2012? Nenhum dos especialistas ouvidos pelo PÚBLICO arrisca uma previsão, mas todos convergem numa certeza: a pobreza vai agudizar-se nos próximos meses e anos, muito além da sua definição estatística, principalmente à custa dos desempregados de longa duração e das famílias trabalhadoras pobres.

A estas o mais certo é juntarem-se agora os cerca de 2,5 milhões de trabalhadores cujos salários andam entre os 700 e os 800 euros.

"O país vai assistir a um crescimento das famílias-sanduíche: os dois membros do casal trabalham a tempo inteiro, e por isso estão fora da malha de protecção do Estado social, mas não ganham que chegue para fazer face às despesas", vaticina Pedro Adão e Silva, professor de Sociologia do ISCTE.

Temos então que as famílias vão recuar "20 ou 30 anos" em termos de rendimentos. Mas vão ficar pior do que nessa altura, segundo Adão e Silva: "Este retrocesso tem contornos novos, porque do ponto de vista da riqueza vamos recuar esses anos, mas mantendo uma estrutura de despesas fixas que não tem nada a ver com a do passado: as pessoas hoje gastam muito mais com a casa, a escolaridade dos filhos, a electricidade, o gás, a água, o carro, a televisão e mesmo a Internet, que se tornou obrigatória até para preencher o IRS."

Ainda o diagnóstico actual, nas contas de Carvalho da Silva, secretário-geral da CGTP-IN: "Os números de há dois anos diziam-nos que 9% dos trabalhadores recebiam o salário mínimo nacional ou menos. Mas a tendência era para uma aceleração muito grande e, neste momento, creio que serão muitos mais. Depois, nos sectores da têxtil, vestuário e calçado, a maior parte das pessoas ganha três, quatro ou dez euros acima do salário mínimo, uma ninharia." "Na maior parte dos países europeus, quem tem um trabalho está imune à pobreza, porque o salário liberta e autonomiza. Em Portugal, não", reforça ainda Pedro Adão e Silva.

O Governo poupou estes working poor a boa parte das medidas de austeridade. Mas, como lembra Sérgio Aires, da Rede Europeia Antipobreza, isto não faz com que consigam fugir ao aumento do custo de vida. "Não lhes é possível chegar a um supermercado e apresentar a declaração de IRS para obter desconto no arroz." Mas estes até são os que estarão mais bem preparados para lidar com o que aí vem, diz Aires: "São os remediados crónicos. Estão habituados."

Em piores lençóis ficará a fasquia acima. "A mediana salarial em Portugal está entre os 700 e os 800 euros, ou seja, metade dos trabalhadores ganha no máximo isso", diz Pedro Adão e Silva. Estes, sim, serão os mais fustigados pelos ventos de austeridade. Aumenta o IVA, os transportes, a electricidade, as taxas moderadoras, o IMI das casas. Reduzem-se as deduções fiscais, os subsídios de Natal e, em muitos casos, o que seja retribuição além do salário base. "No sector privado, estas retribuições representam 25% da remuneração. Ora, tudo isso está a desaparecer das folhas de pagamento de forma muito acelerada", enfatiza o secretário-geral da CGTP-IN.

Pagar as facturas

Num país com 4,9 milhões de empregados, temos quase 2,5 milhões de trabalhadores encaixados nesta categoria da mediana salarial. "Se o emprego de um deles falha, a situação entra em colapso", diz Sérgio Aires. Às portas da Deco bateram, entre Janeiro e Setembro, 17 mil novas famílias. Aos habituais pedidos de ajuda para reestruturação dos créditos somam-se novas situações. "Já há muita gente nesta faixa de rendimentos com dificuldade em pagar as facturas da água, da luz, da televisão por cabo...", conta Natália Nunes, desta associação de defesa dos consumidores.

Muitos dos que recorrem à Deco estão também a iniciar a via-sacra dos centros de emprego para se juntarem aos 554 mil desempregados que aparecem no boletim de Setembro do IEFP (675 mil, na estimativa do INE). Dá uma taxa de 12,1%. Pior: dos mais de 550 mil desempregados, 46% não tinham direito a subsídio. Acresce que no Orçamento do Estado para 2012, o Governo admite que o desemprego possa atingir os 13,4%. Isso dá entre 60 e 70 mil novos desempregados. A partir de 2012, a cumprir-se o memorando da troika, o valor do subsídio não poderá exceder 1050 euros. Ao fim de 18 meses acaba-se, e, após o primeiro ano, as prestações sofrem um corte de 10%. Para Adão e Silva, a conjugação destes factores trará uma realidade nova ao país. "Ter muitos desempregados sem protecção é uma novidade relativa para o país e vai criar um enorme grupo de novos pobres."

O facto de ser desempregado vai transformar-se em sinónimo de ser pobre para milhares de portugueses, concorda Bruto da Costa, coordenador do estudo Um Olhar sobre a Pobreza. "Entre os pobres, a percentagem de desempregados não era muito elevada." Doravante, "vai haver gente que nunca foi pobre e que, ao cair no desemprego, passará a integrar esse grupo, porque não cumprirá os requisitos para ter direito ao subsídio, porque o subsídio é insuficiente para se sustentar e à sua família ou porque o prazo do subsídio expirou".

"A comer pior..."

Nesta descida da escala social, há outros dois grupos a considerar: a classe média alta e os pensionistas. Estes porque, "não sendo os mais afectados por estas medidas", como lembra Adão e Silva, verão congelada a sua trajectória de afastamento da pobreza. Não é pouco se nos lembrarmos que a diminuição da pobreza no país se tem alcandorado na melhoria da situação dos idosos. Quanto à classe média ou média alta, o puzzle é mais complexo. "São pessoas que, apesar de terem salários elevados, acima e muito acima dos 1500 euros, tinham o seu orçamento todo organizado em função do rendimento e que agora se vêem com cortes no salário, comissões, horas extraordinárias que deixaram de ser pagas", observa Natália Nunes, habituada a refazer as contas de "professores, médicos, advogados e até juízes". É o resultado do fortíssimo endividamento das famílias. "Mesmo aqui, já há muitas pessoas a comer pior para não ter de entregar a casa ao banco", reforça Bruto da Costa.

Entre habitação e créditos ao consumo, as famílias portuguesas deviam à banca cerca de 129 mil milhões de euros, dados do Banco de Portugal referentes a Agosto. Nesse mês, o crédito malparado ascendia aos 3,3 mil milhões. Com o aumento do desemprego, não é preciso nenhuma bola de cristal para perceber que a cobrança duvidosa vai agravar-se.

"Estas famílias não caem na pobreza em sentido absoluto, mas perdem a possibilidade de manter o nível de vida que tinham e isso é um problema real para muitas famílias", diz ainda Bruto da Costa, acusando o Estado de se ter demitido da sua função reguladora, quando optou por ignorar o problema do sobreendividamento das famílias. "O Governo podia ter impedido isso e nada fez."

Bruto da Costa acha que a discussão sobre o novo Orçamento está a passar ao lado do essencial. "É um documento que aponta para outro modelo de sociedade, com menos Estado, e isso não está a ser discutido."

Adão e Silva não se importa de lançar o mote. "A nossa democracia, como todas as europeias do pós-guerra, assentou na integração social das classes médias. Pensar que é possível desmantelar as condições económicas e sociais que estiveram na génese da legitimação política do regime sem que isso tenha consequências é um erro de enormes proporções", atira. E conclui: "Ao cortar as aspirações sociais ascendentes da classe média, que são um factor de legitimidade da democracia, o próprio Governo está a criar uma outra crise além da social: a crise da legitimidade política."

(Por Maria João Pires, Público, 23/10/2011)

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